Não é necessário ser especialista em educação para constatar que o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) é o mais bem acabado e inteligente instrumento de processo seletivo brasileiro aos milhares de pretendentes ao curso superior. Basta observar a qualidade e coerência constantes das questões aplicadas neste ano, em todas as áreas do conhecimento. Sem dúvida, os temas abordados transcenderam os ambientes clássicos formais tão presentes nos antigos vestibulares, exigindo dos inscritos (eu, dentre estes) o máximo de sua capacidade de interpretação aplicada a sua realidade cotidiana.
É o caso de uma questão da prova de matemática onde o casal que realiza um financiamento imobiliário precisa identificar o valor da décima prestação, considerando a redução havida do saldo devedor de seu compromisso e sua adimplência – típico exemplo do controle financeiro doméstico que experimentamos com as dolorosas prestações do nosso dia a dia. Nesse contexto, penso que este gigante processo seletivo mobilizador de massas juvenis (e de alguns poucos coroas) assume outro papel que não o essencialmente seletivo, qual seja o de exercer sua pedagogia abrangendo o mundo real em que se vive.
Assim, abandona as antigas fórmulas de macetes, montagens de acrósticos, esforço de decoreba e variações do gênero, em favor de um movimento que aproveita este momento mobilizador nacional para formar e provocar o pensamento autônomo. Os temas de redação escolhidos nos últimos anos reforça este sentimento de aproximação com a realidade, sempre a provocar em cada participante sua capacidade de discernimento e a forma pela qual ele vê e vive o mundo. A abrangência social experimentada neste Enem (A Persistência da Violência Contra a Mulher na Sociedade Brasileira) é o exemplo mais próximo desta boa provocação, o que aproxima os jovens de temas atuais e instigantes que tocam o processo antropológico e cultural da formação e evolução da sociedade brasileira, seus mitos, preconceitos, tabus, atrasos e possibilidades e indicativos de superação.
Outro aspecto notável, com a cautela que deve nortear qualquer palpite emitido por um não especialista, está identificado na transversalidade didática (conexões de temas aparentemente distintos) observada entre as diversas áreas do conhecimento expostas nas provas de 2015. É o caso verificado na questão que usa elementos de marketing merchandising no enunciado para se compreender elementos de estratégia argumentativa na construção de textos. É tudo melhor e muito diferente dos tradicionais vestibulares pelos quais transitei, experimentei e vivenciei com filhos e sobrinhos.
Necessariamente o novo modelo de intervenção seletiva representada pelo Enem, interferirá (se já não interferiu) na abordagem pedagógica dos estabelecimentos de ensino médio, e especialmente nos cursos preparatórios, o que exigirá destas unidades igual movimento nesta mesma direção. Do contrário haverá descompasso entre o pragmatismo constante do conteúdo da preparação praticada até então e o que efetivamente se exige e se aplica no atual processo seletivo.
Posto isto, presumo que esta dinâmica de seleção já esteja sendo pensada como âncora revisadora e norteadora de um novo currículo nacional capaz de alcançar a fase da educação básica de sorte a unificar os modelos existentes – inclusive nele inserindo jurídica e tecnicamente os estabelecimentos de ensino privados que certamente se agregarão à nova proposta em andamento, sob pena de perder espaço e seu lugar no mercado. Ou seja: o Enem, mais que um teste aplicado como etapa obrigatória para a conquista de uma vaga na universidade pública, pode (e deve) exercer influência e orientar a melhoria dos ensinos básico, médio e superior, num só diapasão articulado entre as fases que compõem a totalidade do sistema educacional brasileiro.
Mas nem tudo são flores! A despeito dos fatores favoráveis e dignos de elogios, faz-se necessário repensar a forma da composição das questões. Tanto no primeiro, quanto no segundo dia deste processo de 2015, restou evidente a impossibilidade de se completar o exame pelo tempo disponibilizado, respectivamente, 4,5 horas e 5,5 horas. Por mais preparado que estivesse o participante, mesmo que gênio, foi humanamente impossível responder honesta e rigorosamente aos bem elaborados, mas longos enunciados das 180 questões aplicadas. Um massacre de arrancar o pica-pau do oco! Como sugestão de um cidadão comum para os próximos processos, sob pena de não se aproveitar a delícia dos conteúdos das questões, de duas, uma: ou reduzam o número de questões; ou ampliem o tempo de respostas.
Crédito: Jornal O Popular, edição 27/10/2015
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